Eles cortam, mas também reescrevem, mudam títulos e personagens. São os editores que, muitas vezes, salvam os textos dos autores
Os Mestres da Tesoura
Eles cortam, mas não fazem só isso. Também reescrevem, mudam títulos, alteram personagens. São os editores que mexem e, muitas vezes, salvam os textos dos autores
Por Mariana Delfini
Pelos corredores da The New Yorker circulava a história de que o Novo Testamento seria um livro muito melhor caso tivesse resultado da colaboração entre Mateus, Marcos, Lucas e Shawn", conta o jornalista e documentarista João Moreira Salles a respeito de um dos editores da famosa revista norte-americana. William Shawn — que, durante sua atuação entre 1952 e 1987, mexeu nos originais de expoentes do jornalismo literário como Lillian Ross, John Hersey e Truman Capote — é um exemplo bem-sucedido da tradição norte-americana de edição. Na imprensa, principalmente em revistas, é sabido e aceito que a mão cuidadosa de um editor é essencial para obter clareza e profundidade nos textos. Mas e na literatura de ficção, em que o trabalho com a linguagem é mais importante do que qualquer outra coisa? Um caso que veio à tona recentemente mostrou como, nos Estados Unidos, os editores de livros são — para o bem e para o mal — tão "intervencionistas" quanto os de revistas e jornais. E essa escola começa a se fazer sentir também no Brasil, onde o êxito de crítica e público de vários escritores se deve, em larga medida, à tesoura e à cola de bons editores.
O caso recente que levantou o debate sobre o assunto foi o lançamento, no Brasil, do livro Iniciantes, de Raymond Carver. A obra é a versão inicial de We Talk about when We Talk about Love (Sobre o que Falamos quando Falamos de Amor), o volume de contos mais famoso do escritor americano, que foi publicado em 1981 nos Estados Unidos. É estarrecedora a diferença entre as duas versões. A última é mais inventiva, mais aguda, mais enxuta e — na visão da maior parte dos críticos — bem melhor do que a versão inicial que chega às livrarias agora. A diferença entre os dois textos é a intervenção de Gordon Lish, editor da Alfred A. Knopf que trabalhou sobre o original de Carver. Por causa do trabalho de Lish, Carver foi aclamado, após o lançamento de We Talk..., como o principal expoente da corrente minimalista americana. Sem Lish, sua coletânea com 17 contos seria provavelmente apenas isto — mais um livro de contos na vastidão da literatura dos Estados Unidos. É só ler Iniciantes e conferir.
Lish fez uso principalmente da tesoura, cortando mais da metade da primeira versão, mas não se limitou a isso. As alterações incluem mudanças de títulos, fragmentação do texto por meio da pontuação, aumento da oralidade e até reformulação dos finais das histórias, que ficaram mais abruptos e lacônicos. A terceira história da coletânea, por exemplo, que levou o título Sr. Coffee e Sr. Fixit, em vez de Cadê Todo Mundo?, sofreu mudança no nome de personagens, perdeu metade das 15 páginas originais e teve o final alterado (leia trechos comparativos na pág. 70). Carver não gostou e dedicou o volume à sua terceira mulher, Tess Gallagher. Ela prometeu a ele que publicaria posteriormente os contos na versão completa. Carver morreu em 1988, e só agora, 21 anos depois, o livro veio à luz.
Poderíamos dizer, então, que Lish foi tão autor quanto Carver? Não. "Em primeiro plano está o trabalho do artista. O editor não teve a ideia, não criou as situações, só apareceu para procurar eventuais problemas", diz Paulo Roberto Pires, escritor, diretor editorial da editora Agir e blogueiro de BRAVO!. Ele compara o trabalho do editor ao do produtor de um disco: "Ele dá a cara do álbum e ajuda a definir melhor a personalidade do artista". William Shawn, citado no começo deste texto e no posfácio de João Moreira Salles para o livro O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, concordaria com a definição. Quando um autor sugeriu que o texto passara a lhe pertencer também, retrucou: "Não, ele pertence a você. Eu apenas o tornei mais seu".
O MELHOR ARTÍFICE
O caso Lish-Carver é um dos mais extremos, mas está longe de ser único. Marcos da literatura já sofreram tesouradas de editores. Para publicar seu primeiro romance, A Náusea (1938), o filósofo francês Jean-Paul Sartre abriu mão de 50 páginas de passagens eróticas, detalhes do passado do protagonista Antoine Roquentin e até de alguns personagens. Ele fez tais modificações — de má vontade, vale dizer — a pedido de seu editor na casa francesa Gallimard. Mas é provável que tenha gostado do resultado — já que, ao contrário de Carver, não guardou o original para o julgamento da posteridade. O poema mais famoso do americano T. S. Eliot, A Terra Desolada (The Waste Land), foi bastante cortado. Algumas páginas de seu manuscrito ganharam um traço de lápis de alto a baixo do também poeta e amigo de Eliot, Ezra Pound. Este ainda ganhou dedicatória com admiração explícita: "A Ezra Pound, il miglior fabbro". A mesma expressão — "o melhor artífice" — foi utilizada por Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, para definir seu ídolo, o poeta Arnaut Daniel.
Não faltam casos no Brasil também. Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, Milton Hatoum, um dos melhores e mais premiados escritores do país, contou abertamente que recebeu a sugestão de seus editores para tirar a última página de Órfãos do Eldorado (2008), deixando em suspenso a relação entre os personagens Dinaura e Arminto. A observação foi acatada — e não foi a primeira. Para Hatoum, esse trabalho de edição não é apenas normal, mas também importante. "É o momento em que você dá seu texto aos primeiros leitores e sai daquela solidão terrível de três ou quatro anos, de quando você está escrevendo sem saber o que está acontecendo", diz. Um de seus melhores romances, Dois Irmãos, teve a publicação adiada por um ano por causa do narrador, que parecia "inacabado". Seus primeiros leitores — Luiz Schwarcz e Maria Emília Bender, editores, o escritor Raduan Nassar, o crítico Davi Arrigucci Jr. e Ruth Lanna, mulher de Hatoum — apontaram, entre outros detalhes estruturais, que o narrador carecia de mais desenvolvimento.
Com base nessa avaliação, Hatoum acentuou a dúvida sobre a paternidade do menino que conta a história, intensificando assim o drama de sua identidade. Com isso, transformou o status do narrador — que, além de testemunha, virou personagem (leia trechos comparativos na pág. 72). Esse percurso chegou a ser analisado na Universidade de São Paulo, num trabalho de Maria da Luz Pinheiro de Cristo, estudiosa da obra de Hatoum, que examinou os 24 manuscritos originais do livro.
Por sua vez, o título Dois Irmãos foi sugestão de Schwarcz, depois de Hatoum já ter testado nomes como "A Dúvida", "Filhos de Halim" e "Filhos da Matriarca". O rebatismo da obra, aliás, é uma das práticas mais recorrentes entre editores. O já citado A Náusea, caso valesse a opinião de Sartre, poderia se chamar "Panfleto sobre a Contingência", "Melancolia" e "As Aventuras Extraordinárias de Antoine Roquentin". Vidas Secas, de Graciliano Ramos, era "O Mundo Coberto de Penas" antes de Daniel Pereira sugerir o título definitivo. Pereira, que salvou Graciliano de suas penas, era irmão de José Olympio, editor e fundador da editora de mesmo nome, responsável pela primeira edição da obra do autor alagoano.
Existem mudanças radicais, que provocam a reescrita do livro de cabo a rabo. Na primeira versão de Estação Carandiru (1999), o médico Drauzio Varella falava de seus dez anos de atendimento voluntário na Casa de Detenção de São Paulo em terceira pessoa, por meio de um narrador que usava a linguagem dos presos. Ele estava interessado justamente nesse vocabulário e ficou contrariado quando o editor Luiz Schwarcz sugeriu que ele contasse as histórias com a voz do médico, para evitar que o texto ficasse cansativo. Depois de pensar muito, decidiu reescrever o livro. Publicado, Estação Carandiru venceu o Prêmio Jabuti em 2000 na categoria livro do ano de não ficção e vendeu mais de 470 mil exemplares, um dos maiores sucessos do mercado editorial brasileiro nos últimos anos.
Nas letras brasileiras, um caso superlativo como o de Carver — mas de resultado oposto em termos de qualidade — talvez seja a edição de 1925 do escritor Monteiro Lobato para Memórias de um Sargento de Milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida. O criador de Emília e Narizinho cortou 15% do romance, uma das obras-primas do folhetim brasileiro, além de atualizar a linguagem e transformar orações coordenadas em subordinadas. Na abertura, falando a respeito da própria edição, Lobato escreveu que Memórias... não passava de "linda criatura coberta de frangalhos, cara suja, cabelos despenteados, unhas compridas". A edição acabou não vingando. O que mostra que, algumas vezes, autor e leitores dispensam salvadores.
Fonte 1 :Mariana Delfini é jornalista.
O LIVRO
Iniciantes, de Raymond Carver. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 304 págs., R$ 49.
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