sábado, 22 de agosto de 2009

Os Mestres da Tesoura

Eles cortam, mas também reescrevem, mudam títulos e personagens. São os editores que, muitas vezes, salvam os textos dos autores

Os Mestres da Tesoura
Eles cortam, mas não fazem só isso. Também reescrevem, mudam títulos, alteram personagens. São os editores que mexem e, muitas vezes, salvam os textos dos autores
Por Mariana Delfini

Pelos corredores da The New Yorker circulava a história de que o Novo Testamento seria um livro muito melhor caso tivesse resultado da colaboração entre Mateus, Marcos, Lucas e Shawn", conta o jornalista e documentarista João Moreira Salles a respeito de um dos editores da famosa revista norte-americana. William Shawn — que, durante sua atuação entre 1952 e 1987, mexeu nos originais de expoentes do jornalismo literário como Lillian Ross, John Hersey e Truman Capote — é um exemplo bem-sucedido da tradição norte-americana de edição. Na imprensa, principalmente em revistas, é sabido e aceito que a mão cuidadosa de um editor é essencial para obter clareza e profundidade nos textos. Mas e na literatura de ficção, em que o trabalho com a linguagem é mais importante do que qualquer outra coisa? Um caso que veio à tona recentemente mostrou como, nos Estados Unidos, os editores de livros são — para o bem e para o mal — tão "intervencionistas" quanto os de revistas e jornais. E essa escola começa a se fazer sentir também no Brasil, onde o êxito de crítica e público de vários escritores se deve, em larga medida, à tesoura e à cola de bons editores.

O caso recente que levantou o debate sobre o assunto foi o lançamento, no Brasil, do livro Iniciantes, de Raymond Carver. A obra é a versão inicial de We Talk about when We Talk about Love (Sobre o que Falamos quando Falamos de Amor), o volume de contos mais famoso do escritor americano, que foi publicado em 1981 nos Estados Unidos. É estarrecedora a diferença entre as duas versões. A última é mais inventiva, mais aguda, mais enxuta e — na visão da maior parte dos críticos — bem melhor do que a versão inicial que chega às livrarias agora. A diferença entre os dois textos é a intervenção de Gordon Lish, editor da Alfred A. Knopf que trabalhou sobre o original de Carver. Por causa do trabalho de Lish, Carver foi aclamado, após o lançamento de We Talk..., como o principal expoente da corrente minimalista americana. Sem Lish, sua coletânea com 17 contos seria provavelmente apenas isto — mais um livro de contos na vastidão da literatura dos Estados Unidos. É só ler Iniciantes e conferir.

Lish fez uso principalmente da tesoura, cortando mais da metade da primeira versão, mas não se limitou a isso. As alterações incluem mudanças de títulos, fragmentação do texto por meio da pontuação, aumento da oralidade e até reformulação dos finais das histórias, que ficaram mais abruptos e lacônicos. A terceira história da coletânea, por exemplo, que levou o título Sr. Coffee e Sr. Fixit, em vez de Cadê Todo Mundo?, sofreu mudança no nome de personagens, perdeu metade das 15 páginas originais e teve o final alterado (leia trechos comparativos na pág. 70). Carver não gostou e dedicou o volume à sua terceira mulher, Tess Gallagher. Ela prometeu a ele que publicaria posteriormente os contos na versão completa. Carver morreu em 1988, e só agora, 21 anos depois, o livro veio à luz.

Poderíamos dizer, então, que Lish foi tão autor quanto Carver? Não. "Em primeiro plano está o trabalho do artista. O editor não teve a ideia, não criou as situações, só apareceu para procurar eventuais problemas", diz Paulo Roberto Pires, escritor, diretor editorial da editora Agir e blogueiro de BRAVO!. Ele compara o trabalho do editor ao do produtor de um disco: "Ele dá a cara do álbum e ajuda a definir melhor a personalidade do artista". William Shawn, citado no começo deste texto e no posfácio de João Moreira Salles para o livro O Segredo de Joe Gould, de Joseph Mitchell, concordaria com a definição. Quando um autor sugeriu que o texto passara a lhe pertencer também, retrucou: "Não, ele pertence a você. Eu apenas o tornei mais seu".

O MELHOR ARTÍFICE
O caso Lish-Carver é um dos mais extremos, mas está longe de ser único. Marcos da literatura já sofreram tesouradas de editores. Para publicar seu primeiro romance, A Náusea (1938), o filósofo francês Jean-Paul Sartre abriu mão de 50 páginas de passagens eróticas, detalhes do passado do protagonista Antoine Roquentin e até de alguns personagens. Ele fez tais modificações — de má vontade, vale dizer — a pedido de seu editor na casa francesa Gallimard. Mas é provável que tenha gostado do resultado — já que, ao contrário de Carver, não guardou o original para o julgamento da posteridade. O poema mais famoso do americano T. S. Eliot, A Terra Desolada (The Waste Land), foi bastante cortado. Algumas páginas de seu manuscrito ganharam um traço de lápis de alto a baixo do também poeta e amigo de Eliot, Ezra Pound. Este ainda ganhou dedicatória com admiração explícita: "A Ezra Pound, il miglior fabbro". A mesma expressão — "o melhor artífice" — foi utilizada por Dante Alighieri, autor da Divina Comédia, para definir seu ídolo, o poeta Arnaut Daniel.

Não faltam casos no Brasil também. Na Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) deste ano, Milton Hatoum, um dos melhores e mais premiados escritores do país, contou abertamente que recebeu a sugestão de seus editores para tirar a última página de Órfãos do Eldorado (2008), deixando em suspenso a relação entre os personagens Dinaura e Arminto. A observação foi acatada — e não foi a primeira. Para Hatoum, esse trabalho de edição não é apenas normal, mas também importante. "É o momento em que você dá seu texto aos primeiros leitores e sai daquela solidão terrível de três ou quatro anos, de quando você está escrevendo sem saber o que está acontecendo", diz. Um de seus melhores romances, Dois Irmãos, teve a publicação adiada por um ano por causa do narrador, que parecia "inacabado". Seus primeiros leitores — Luiz Schwarcz e Maria Emília Bender, editores, o escritor Raduan Nassar, o crítico Davi Arrigucci Jr. e Ruth Lanna, mulher de Hatoum — apontaram, entre outros detalhes estruturais, que o narrador carecia de mais desenvolvimento.

Com base nessa avaliação, Hatoum acentuou a dúvida sobre a paternidade do menino que conta a história, intensificando assim o drama de sua identidade. Com isso, transformou o status do narrador — que, além de testemunha, virou personagem (leia trechos comparativos na pág. 72). Esse percurso chegou a ser analisado na Universidade de São Paulo, num trabalho de Maria da Luz Pinheiro de Cristo, estudiosa da obra de Hatoum, que examinou os 24 manuscritos originais do livro.

Por sua vez, o título Dois Irmãos foi sugestão de Schwarcz, depois de Hatoum já ter testado nomes como "A Dúvida", "Filhos de Halim" e "Filhos da Matriarca". O rebatismo da obra, aliás, é uma das práticas mais recorrentes entre editores. O já citado A Náusea, caso valesse a opinião de Sartre, poderia se chamar "Panfleto sobre a Contingência", "Melancolia" e "As Aventuras Extraordinárias de Antoine Roquentin". Vidas Secas, de Graciliano Ramos, era "O Mundo Coberto de Penas" antes de Daniel Pereira sugerir o título definitivo. Pereira, que salvou Graciliano de suas penas, era irmão de José Olympio, editor e fundador da editora de mesmo nome, responsável pela primeira edição da obra do autor alagoano.

Existem mudanças radicais, que provocam a reescrita do livro de cabo a rabo. Na primeira versão de Estação Carandiru (1999), o médico Drauzio Varella falava de seus dez anos de atendimento voluntário na Casa de Detenção de São Paulo em terceira pessoa, por meio de um narrador que usava a linguagem dos presos. Ele estava interessado justamente nesse vocabulário e ficou contrariado quando o editor Luiz Schwarcz sugeriu que ele contasse as histórias com a voz do médico, para evitar que o texto ficasse cansativo. Depois de pensar muito, decidiu reescrever o livro. Publicado, Estação Carandiru venceu o Prêmio Jabuti em 2000 na categoria livro do ano de não ficção e vendeu mais de 470 mil exemplares, um dos maiores sucessos do mercado editorial brasileiro nos últimos anos.

Nas letras brasileiras, um caso superlativo como o de Carver — mas de resultado oposto em termos de qualidade — talvez seja a edição de 1925 do escritor Monteiro Lobato para Memórias de um Sargento de Milícias (1852-1853), de Manuel Antônio de Almeida. O criador de Emília e Narizinho cortou 15% do romance, uma das obras-primas do folhetim brasileiro, além de atualizar a linguagem e transformar orações coordenadas em subordinadas. Na abertura, falando a respeito da própria edição, Lobato escreveu que Memórias... não passava de "linda criatura coberta de frangalhos, cara suja, cabelos despenteados, unhas compridas". A edição acabou não vingando. O que mostra que, algumas vezes, autor e leitores dispensam salvadores.

Fonte 1 :Mariana Delfini é jornalista.


O LIVRO
Iniciantes, de Raymond Carver. Tradução de Rubens Figueiredo. Companhia das Letras, 304 págs., R$ 49.

Revolucionários do Olhar

Dois nomes fundamentais na arte do século 20 ganham no Brasil exposições à altura de sua importância. Vemos o mundo de um jeito diferente graças a Matisse e Chagall.
Revolucionários do Olhar
Dois nomes fundamentais na arte do século 20 ganham no Brasil exposições à altura de sua importância. Vemos o mundo de um jeito diferente graças a Matisse e Chagall
Por Gisele Kato


Quem não se lembra das filas enormes em frente ao prédio da Pinacoteca do Estado de São Paulo em junho de 1995? Na época, 183 mil pessoas foram ao museu atrás dos bronzes de Auguste Rodin. O recorde de visitantes, até então inédito para uma exposição no país, entrou para a história das instituições culturais como uma espécie de marco. Rodin provou aos museus que aqui havia um público interessado em arte e assim inaugurou a era das grandes mostras internacionais no país. Ajudados pelas leis de incentivo, os museus trataram de se preparar para eventos desse porte. E hoje pode-se dizer que o Brasil não só está inserido em um circuito de prestígio como também exporta iniciativas. A programação que começa neste mês e vai circular por diferentes cidades reforça nosso lugar no mapa das exposições importantes que rodam o mundo. Em Belo Horizonte, a Casa Fiat de Cultura apresenta O Mundo Mágico de Marc Chagall (o mesmo museu traz, também, uma retrospectiva de Rodin — mais modesta, porém, do que a que esteve no Brasil em 1995). Em outubro, a mostra de Chagall aporta no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio de Janeiro. Já a Pinacoteca do Estado de São Paulo aposta todas as fichas em Matisse Hoje, a partir de setembro.

As duas exposições foram produzidas especialmente para o Brasil. Com cerca de 300 obras, incluindo séries completas de gravuras fundamentais para a trajetória do pintor russo, a mostra de Chagall, com curadoria de Fábio Magalhães, é a maior exibição dedicada ao artista desde a sala especial na Bienal Internacional de São Paulo, em 1957. Com peças de diferentes coleções, tanto públicas como privadas, a individual resulta de um esforço de negociação só possível agora que o Brasil já construiu uma tradição de grandes mostras. Temos hoje credibilidade junto aos mais importantes museus do mundo, ingrediente essencial na lista de negociações necessárias para chegar a números superlativos como esses.

No Ano da França no Brasil, a exposição de Matisse, um desejo do diretor Marcelo Araújo desde que assumiu a Pinacoteca, já se abre ao público com um status imbatível: trata-se da primeira individual do artista francês no país. Impõe-se, portanto, como a chance de corrigir uma das faltas mais graves no repertório cultural dos brasileiros. Matisse está entre os nomes mais revolucionários da história da arte, e seu legado influencia a produção artística mundial até hoje. Com 80 obras, provenientes de acervos de museus internacionais e colecionadores dos mais respeitados, a exposição também resulta de acordos rigorosos, em uma sequência de combinações que se aproxima de uma verdadeira ação diplomática. Atesta, ainda, a confiança de que o Brasil dispõe atualmente no segmento, já que vem assinada por uma curadora francesa: Emilie Ovaere, ligada ao Museu Matisse, de Le Cateau-Cambrésis. A expectativa de público para a mostra é tão alta que a entrada da Pinacoteca será reformada para melhor acolher as pessoas.

Até o dia dos vernissages propriamente ditos, exposições dessa dimensão exigem esforços que talvez passem despercebidos depois de montadas (veja quadro na pág. anterior). Curadores e produtores precisam negociar com os donos das peças emprestadas desde seu transporte até o seguro contra acidentes e roubo. "Mas esses trâmites são muito mais fáceis hoje do que eram na década de 1980, por exemplo. Hoje temos um corpo técnico muito capacitado e instituições reconhecidas. Fazer mostras assim regularmente facilita ainda a concretização de iniciativas futuras", diz Maria Eugênia Saturni, da produtora Base7 Projetos Culturais, responsável pelas exibições de Chagall e Rodin em Belo Horizonte.

Por detalhes dessa ordem, além do peso dos artistas em questão, claro, dá para dizer com toda a certeza que se inicia neste mês uma temporada de ouro para as artes plásticas no Brasil. Matisse, ao lado de nomes como Pablo Picasso e Marcel Duchamp, sacudiu o universo criativo de forma definitiva. Artistas contemporâneos a ele e as gerações seguintes, de uma forma ou de outra, olharam para o que ele fez. Muitos são seguidores confessos até mesmo atualmente, em pleno século 21. Já Chagall não teve herdeiros — o que não significa, de forma alguma, que seu peso seja menor na história da arte. Ele construiu uma obra tão original e ao mesmo tempo tão antenada com as vanguardas modernas que, aos que vieram depois dele, restou apenas admirar um gênio totalmente sui generis. Em comum, eles dividem uma boa parte da responsabilidade pela percepção que temos hoje — da arte e do mundo.


Fonte: revista bravo

Pessoas

Pessoas povoam o mundo , sem destino sem direção.

domingo, 16 de agosto de 2009

Exposição em São Paulo apresenta os figurinos desenhados pelo estilista Christian Lacroix para teatro, ópera e balé


Apaixonado por teatro desde a meninice, vivida na cidade francesa de Arles, o estilista Christian Lacroix começou a desenhar figurinos para peças, balés e óperas antes mesmo de criar sua grife de alta-costura. Um dos principais responsáveis por injetar cor e extravagância ao segmento mais exclusivo da moda — dominado até meados da década de 1980 por trajes minimalistas —, Lacroix empresta o estilo barroco de suas coleções a figurinos de personagens memoráveis, como a Desdêmona da montagem francesa de Otelo (1995), de Shakespeare, e Fedra, papel-título da clássica tragédia de Racine, levada aos palcos parisienses no mesmo ano.
Como parte dos eventos do Ano da França no Brasil, o Museu de Arte Brasileira da Fundação Armando Álvares Penteado (MAB-Faap), em São Paulo, abriga, a partir de 24 de agosto, cerca de cem peças de figurinos teatrais e 80 croquis. Eles compõem a exposição Christian Lacroix — Trajes de Cena, já vista na França e em Cingapura. Sejam para as passarelas ou para o palco, as roupas concebidas por Lacroix carregam elementos básicos para um verdadeiro show de estilo: tons vibrantes, ousadia e brilho na medida exata. Nas páginas que se seguem, três amostras da exposição — Romeu e Julieta, Sherazade e Fedra, as duas últimas ilustradas pelas montagens em que os figurinos foram usados.

BALÉ: SHERAZADE
Quando foi convidado pela coreógrafa francesa Blanca Li para desenhar o figurino do balé Sherazade (2001), Lacroix propôs a ela que esquecessem as peças da célebre montagem de 1910, dirigida pelo russo Serguei Diaghilev. Para a nova versão, pensou em cinco matrizes de cores: branco, vermelho, azul, preto e branco e uma policromática, inspirada nos tons do amanhecer. Calças curtas ou pantalonas, lenços de tafetá e peças com apliques compunham a coleção. À direita, o croqui do figurino da protagonista, que aparece suspensa na cena da montagem (abaixo). À esquerda, é possível ver exemplos do vestuário masculino e feminino, ambos de inspiração árabe.

BALÉ: SHERAZADE
Quando foi convidado pela coreógrafa francesa Blanca Li para desenhar o figurino do balé Sherazade (2001), Lacroix propôs a ela que esquecessem as peças da célebre montagem de 1910, dirigida pelo russo Serguei Diaghilev. Para a nova versão, pensou em cinco matrizes de cores: branco, vermelho, azul, preto e branco e uma policromática, inspirada nos tons do amanhecer. Calças curtas ou pantalonas, lenços de tafetá e peças com apliques compunham a coleção. À direita, o croqui do figurino da protagonista, que aparece suspensa na cena da montagem (abaixo). À esquerda, é possível ver exemplos do vestuário masculino e feminino, ambos de inspiração árabe.

TEATRO: FEDRA
Para o figurino da montagem de Fedra (1995), dirigida por Anne Delbée e apresentada na Comédie-Française, o estilista trabalhou principalmente com tecidos egípcios, tingidos em vários tons. Inspirado no vestuário da Antiguidade grega, Lacroix desenhou modelos que destacam o movimento e o volume das peças, como o vestido da página ao lado (em cores). Na imagem da montagem (à esq., em preto-e-branco) pode-se ver a sobreposição de peças do personagem em cena, outro recurso estilístico amplamente utilizado na composição deste figurino.

ONDE E QUANDO
Christian Lacroix — Trajes de Cena. Museu de Arte Brasileira — Fundação Armando Álvares Penteado (rua Alagoas, 903, Higienópolis, São Paulo, SP, tel. 00++/11/3662-7198). De 24/8 a 1º/11. De 3ª a 6ª, das 10h às 20h. Sáb., dom. e feriados, das 13h às 17h. Grátis.
Fonte:bravonline.abril.